O Tio Zé Rolo e o Padre Mercier
Cada aldeia reconta as suas histórias com personagens próprias e reais, ainda que por vezes pareçam saídas de um conto de fadas ou de uma “cowboyada”. E não podemos falar de rivalidades entre indivíduos que partilham o mesmo chão, a água do mesmo ribeiro e o toque do mesmo sino, sem falarmos do Tio Zé Rolo e do Padre Mercier.
De um lado o Padre Mercier. Um homem de Deus, mas com o rigor e método de um general e que os populares diziam ser da PIDE. Era conhecido pela sua retidão e instintos de ditador, que os seus quase 2 metros de altura ajudavam a impor. Na catequese instruía os mais novos a integrar o exército de Deus, com palavras e estaladões, e circulava pelas ruas do campo acompanhado dos seus 3 cães, que lhe foram copiando os gestos e também eles se enfureciam com quem não lhes batesse continência.
A doçura mais requintada que tinha expressado tinha sido no casamento da Crisálida. Olhou a noiva:
– Crisálida, você está muito bonita e muito decente!
Não havia ninguém na freguesia do Campo que ousasse questionar a sua vontade. Ninguém, à exceção do tio Zé Rolo.
Zé Rolo era José Bernardino Cardoso, um revolucionário contra o regime de Salazar, de convicções firmes e fortes, que conhecia bem o seu destino e não permitia que ninguém lhe impusesse uma vontade que não a sua. Nas suas aparições à cidade de Viseu, era visto frequentemente na Rua Direita e no Rossio a desafiar os PIDE’s, manifestando com gritos altos o seu apoio a Norton de Matos.
Um dia outro homem desviou a água do caminho que regava a sua horta, ao que o Tio Zé Rolo respondeu com a força da sua enxada e conta quem ouviu contar, que foi tal a sacholada que lhe deu na cabeça que lhe enfiou a boina no crânio.
O Tio Zé Rolo foi preso uns meses, mas regressou. E voltou a ser preso, uma e outra vez, mas regressava sempre. Numa das vezes em que foi presente em tribunal, o juiz ordenou que ele tirasse o chapéu.
– Não, o chapéu não tiro. – respondeu.
– O Senhor não pode faltar ao respeito, tem que tirar o chapéu! – ordenou o juiz.
– Exmo. Sr. Dr. Meritíssimo Juiz, sinta-se na liberdade de fazer uso dos seus poderes para ordenar que seja autuado por conduta desviante, pode até ordenar que me mandem prender. Mas este chapéu, por mim adquirido e do qual sou único dono, só obedece à minha própria e singela vontade. Trocado por “tintins”. Paguei-o, logo não o tiro. – falou o Tio Zé Rolo.
Valeu-lhe a teimosia duas noites na esquadra. A sua ideia tinha de prevalecer.
Mas uma aldeia só era pequena demais para duas figuras tão imponentes. Por isso, muitos dos ideais do Tio Zé Rolo esbarravam no padre Messiê, e vice-versa.
A guerra entre os dois não era novidade e muitos eram os domingos depois da missa, em que o Tio Zé Rolo, em frente à igreja e aos devotos, gritava a pulmões cheios insultos sobre esse fascista e ditador, que também era padre, nas suas palavras, quase sempre palavras impróprias para um domingo de manhã.
Houve um dia, porque nestas histórias há sempre um dia, em que o Padre Mercier avisou no fim da missa, que a partir do próximo domingo entraria em vigor uma nova lei:
– Todos aqueles que pretendam assistir à missa sentados, têm que pagar!
Seguiu-se um momento de silêncio da plateia e o Tio Zé Rolo, sentado na sua cadeira, colocou o seu chapéu que só tirava sob a presença da cruz, e refletiu na injustiça do mundo: nos pobres cada vez mais pobres e nas regalias dos mais ricos; do povo pobre que mais trabalha e mais merecia descansar.
Ergueu o peito movido pela justiça, cerrou o punho em direção a padre e gritou:
– SEU FILHO DA P***! ÉS UM LADRÃO DO C****! SE TE APANHO LÁ FORA PARTO-TE OS C***. ENFIO-TE A CADEIRA PELO C* ACIMA.
Virou as costas e saiu da igreja.
Escrito por: Dennis Xavier
A partir da recolha de histórias na freguesia do Campo, concelho de Viseu.
Informantes: António Francisco(do relógio), Virgílio Almeida e Jorge Moreira, Rosa Ferreira e Crisálida – Recolhido em Junho de 2022
Ilustração: Mariana Vicente