O Diabo e o Nosso Senhor
Na freguesia de Rio de Loba, havia um confronto antigo, com duas personagens bíblicas. Em Travassós de Cima, vivia o Diabo e do outro lado, em Travassós de Baixo, vivia o Nosso Senhor. Quis o destino que se invertessem as direções do céu e do inferno! Mas calma, não se iludam, porque o Diabo era boa pessoa, devendo a sua alcunha talvez ao facto de ser… feio! Feio como o Diabo. Palavras da própria filha! E o “Nosso Senhor” tinha aquela alcunha porque era aquele tipo de homem que “nem lá vai, nem faz nada”.
António Diabo era importado de São Martinho de Orgens e chegara a Travassós de Cima por via do casamento. Era pedreiro casado com uma mulher apelidada de Branca Flor.
Já o Tio Manuel, o Nosso Senhor, era sapateiro casado com uma senhora chamada Fátima, claro. E não fazia mal a uma mosca, era um anjinho.
Mas não se confundam, também havia o Tio Anjinho que era alfaiate e não tinha nada a ver com o Nosso Senhor.
E na mesma aldeia havia o Papa de Roma e o Bispo, que de papa e de bispo não tinham nada a não ser a alcunha.
Contava o pai da Carma, que Deus tem, que uma vez, no reino dos contos, o Diabo apareceu ao Nosso Senhor. Mas o Nosso Senhor é uma pessoa poderosa e tem poder para tudo, ainda que nem sempre escolha usá-lo. O Diabo perguntou ao Nosso Senhor:
– Ouve lá, tu queres cantar uma cantiga comigo?
E o Nosso Senhor respondeu:
– Não, contigo não quero nada. Vai-te Satanás, para Travassós de Cima, e deixa-me em paz, que tenho uns sapatos para acabar.
Mas o Diabo, farto de carregar pedras, continuou a tentar o Nosso Senhor.
– Já que estás com tanta vontade, então canta tu primeiro.
E o diabo cantou mas de forma ligeiramente diferente da que se vai cantar agora:
Diabo:
Oh carvalho tu és meu
Oh carvalho meu tu és
Vou-te levar para o Inferno
Da cabeça até aos pés
– Então agora é a minha vez?
– Agora é a tua vez!
Nosso Senhor:
Da cabeça até aos pés
Tu vê lá não fales mal
um dia vou-te enfiar
dentro da pia batismal
Diabo:
Dentro da pia batismal
Vê lá que até se estava bem
Aproveita e traz-me o pão
e o copo de vinho também
Nosso Senhor:
Ai seu diabo danado
chega para lá Belzebu
se for para comer e beber
No final quem paga és tu
Diabo:
No final quem paga és tu
Tu não sejas cobardolas
mas se não tiveres dinheiro
Eu vou à cesta das esmolas
E, após umas quadras trocadas e uns copos de vinho bebidos, o diabo rebentou, em gargalhadas claro, pois o poder da oratória do seu compincha Nosso Senhor era maior e numa desgarrada pontuada pelo vinho, não havia quem lhe vencesse. Só na Terra podiam estes dois ser bons amigos, já que o céu e o inferno não preveem esse tipo de narrativas.
António Diabo, apesar de ser boa pessoa, carregava o peso do seu nome. As pessoas faziam de tudo para afastar o Diabo. Muitas eram as casas onde não se sentia bem-vindo.
E havia até quem jurasse que chegou a ver o Diabo no corpo de uma chiba aos saltos num cruzamento qualquer. Mas António Diabo nunca saiu do seu corpo, nem Nosso Senhor fez milagres de jeito nenhum, nem o Tio Anjinho protegeu as nossas almas, nem o Papa o beatificou, nem o Bispo o confessou.
A vida eterna não chegou para nenhum deles, ainda que os contos digam o contrário. António Diabo já morreu e o Tio Manuel Nosso Senhor, não sabendo caminhar sobre as águas, coitado, morreu afogado.
Desta história, já não se sabe o que foi e o que não foi. Ela mora nas ruas de Travassós de Baixo e de Cima, no Céu e no Inferno, nas nossas bocas e talvez um dia, num livro qualquer.
Escrito por: Sofia Moura
Voz: Sofia Moura
A partir da recolha de histórias na Freguesia de Rio de Loba, concelho de Viseu.
Informantes: Conceição Lameira, Carma, Belarmino Santos e Belmiro – Recolhido em junho de 2022
Ilustração: Mariana Vicente