Maria Graça dos Santos

Graça era uma mulher sem nome, o que não deixa de ser uma contradição, uma vez que se chama Graça e ainda hoje é: Maria Graça dos Santos, pois ainda é assim que o “põe” (assina). Só que os papéis do registo roubaram-lhe a “Graça”, ficou Maria dos Santos, nome pelo qual nunca ninguém a conheceu! Nem ela própria se reconhecia!

Em palavras suas, diz que quando era nova era uma flor. Uma Rosa. Talvez assim se tivesse chamado a si própria, Maria Rosa, mas quis o destino dar-lhe um ar de Graça, num tempo em que não havia nada para além de barrigas vazias e de corpos que se lançavam à terra de sol a sol. Nesse nada, alegrava-se a vida com cantorias que davam ritmo à sachola e que acalentavam até os calos da mão.

Graça, que não tinha nome, foi uma criança traquina que soltava gargalhadas por esses caminhos de escassez, tantas que não quiseram as rugas poupar-lhe o rosto e escreveram-lhe na pele todas as tropelias, todas as danças, os cantares, a memória de quem foi e de quem nunca deixou de ser, pois ainda hoje e há mais de 80 anos que é fiel ao coro da igreja.

Quando era jovem, Graça podia não ter nome, mas calçava de verdade os seus pés e por onde quer que andasse, era inimiga das mentiras, dos boatos e o “diz que disse” só funcionava para ela se valesse uma boa gargalhada e se fosse desfeito de seguida.

Houve um dia, com os seus 15 anos, em que a Graça ia a passar num caminho, um caminho batido, e depois da curva viu o que não devia ter visto. Naquele tempo, uma mulher que fosse beijada ou abraçada por um rapaz, estava perdida! Caía nas más línguas dos populares e só o casamento a poderia fazer levantar! Era uma coisa muito séria!

– Oh Graça pela tua boa sorte, não digas nada a ninguém!

– Nada direi porque o que eu vi não pertence a mim estar a falar! 

Assim falava esta mulher que conhecia o lugar das coisas, e sabia que só nos palcos de teatro poderia tomar esses amores e aventuras que não lhe pertenciam.

Quando chegou o dia para se casar, o seu nome não aparecia. Esperavam uma Maria dos Santos, sem Graça, e das poucas vezes que o fez, nesse dia chorou. Não se queria casar. Não tinha nome! As cartas de amor ficavam perdidas porque também o carteiro trocava as Graças e as Marias. E na saudade que as palavras vindas da Alemanha não puderam acalmar, a Graça chorou quatro lágrimas. 

Hoje, depois de 94 anos, diz que o tempo lhe fez tombar as pétalas e que a rosa é agora um cravo. Cravo ou rosa, as suas raízes estendem-se pelo chão daquelas terras, escrevendo o seu nome nas pedras, nas árvores, nos campos de milho, nos tanques das lavadeiras e na igreja a quem sempre foi fiel. E quem lhe encostar o ouvido poderá ouvir um suspiro que sussurra o seu nome: Maria da Graça. 

Escrito por: Dennis Xavier
Inspirado em memórias de vida recolhidass na freguesia do Mundão, concelho de Viseu.
Informantes: Maria Graça dos Santos – Recolhido em julho de 2021
Ilustração: Mariana Vicente

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