Amentar das Almas

Com os tempos mudam-se as vontades e mudam-se também as histórias. Mas nem todas. Alguns homens e mulheres devolvem ao presente esses gestos tão antigos, para que não caiam no esquecimento as coisas mais belas do antigamente. É isso que fazem os homens que cantam para lembrar os mortos. Todas as quartas e sextas-feiras depois da meia noite, o povo que está silencioso, dentro das suas casas poderá escutar as vozes em uníssono de vários homens encapuzados a espalhar-se pelas ruas noturnas e a iluminar até o coração das encruzilhadas. Em Abraveses a tradição é muito antiga. Há que relembrar quem já não caminha ao nosso lado, mas que um dia pisou as mesmas pedras que fazem o nosso chão.

Com lentidão e com fé, os homens caminham sem nunca olhar para trás. Nunca olhar para trás! A quem deslocasse a cabeça para trás do ombro, vinha o diabo e dava-lhe uma grande chapada! A introspeção é profunda e o momento, de grande respeito. 

 

Ó cristão, que estás dormindo
Nesse sono tão profundo
Levantai-vos e rezai
Pelas almas do outro mundo

 

Numa dessas noites, a uma sexta-feira, já passava da uma da manhã, conta o Virgílio, ali ao pé do Cruzeiro, tinham parado os homens a cantar duas quadras numa encruzilhada, quando apareceram dois rapazes novos numa motorizada a dar voltas e mais voltas e a perturbar a amentação das almas. Depois pararam, e enquanto homens entoavam as suas preces em cânticos, um dos rapazes da moto teve a ousadia de falar: 

– Opá! Ei! Onde é que se bebe aqui um copo?!

 Perante a falta de resposta dos homens que cantavam o homem insistiu: 

– Oh pessoal! Estão a ouvir ou quê? Onde é que se pode beber aqui um copo?!

 Ninguém se desviou por um segundo que fosse das suas orações. Seguiu-se um instante de silêncio dos homens da motorizada, que por momentos pareciam também hipnotizados pelas rezas, até que um deles gritou bem alto: 

– Vão mas é para o c****!

Nisto, um dos homens que cantava às almas, de sangue a ferver, pediu licença a Deus para se retirar durante breves instantes, correu até aos rapazes da motorizada sem dizer uma palavra e espetou-lhes uma, duas, três bofetadas bem dadas, que eles fugiram prego a fundo sem olhar para trás! O homem que tinha perdido a paciência, fez o sinal da cruz, respirou fundo e retornou ao grupo sem que ninguém proferisse uma só palavra sobre o sucedido. Nessa noite, conta-se que ouviam-se as gargalhadas do demónio pelas ruas de Abraveses, mas a gente estava enganada. Eram apenas os homens que no final da última quadra, no final da última encruzilhada, já com as cabeças destapadas, aí sim os homens riram bem alto do destino dos rapazes da motorizada.

Em Abraveses esta tradição pertence apenas aos homens. No Campo canta-se com homens e mulheres. E em Mundão são apenas vozes femininas que rompem a noite. Vestidas de negro, mas com diferentes melodias, também elas cantam para não deixar mingar esse sentimento nobre que é o afeto entre os homens e as mulheres, entre os vivos e os mortos. 

Escrito por: Dennis Xavier
A partir da recolha de histórias na Freguesia de Abraveses, concelho de Viseu.
Informantes: Virgílio – Recolhido em julho de
2021
Ilustração: Mariana Vicente

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